1.8.09

PERGUNTAS DOS PÉS À CABEÇA

A planta do pé dá flores?
A barriga da perna pode ter apendicite?
As cabeças dos dedos pensam?
As maçãs do rosto devem proteger-se com insecticida?
As meninas dos olhos com que idade se tornam senhoras?
As asas do nariz voam?
O céu da boca tem estrelas?
As raízes do cabelo devem ser regadas de manhã ou à noite?

in SOARES, Luísa Ducla, A Gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca

6.1.08

Canção da América

Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar

Milton Nascimento

3.7.06

Porque me traíste tanto?

porque tenho eu frieiras
se nunca tiro as luvas?
porque tenho eu arranhões
se os meus gatos são meigos?
como dizia uma pobre rapariga
que era criada e mal sabia ler
também eu vou dizer
coração partido
pé dormente
vou para a cama
que estou doente
porque me traíste tanto
se os meus gatos são meigos?
porque me traíste tanto
se eu nunca tiro as luvas?

Adília Lopes

9.5.06

Bairro do Amor

No bairro do amor a vida é um carrossel
Onde há sempre lugar para mais alguém
O bairro do amor foi feito a lápis de cor
Por gente que sofreu por não ter ninguém

No bairro do amor o tempo morre devagar
Num cachimbo a rodar de mão em mão
No bairro do amor há quem pergunte a sorrir:
Será que ainda cá estamos no fim do verão?

Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair um pouco
Eu sei que tu compreendes bem

No bairro do amor a vida corre sempre igual
De café em café, de bar em bar
No bairro do amor o sol parece maior
E há ondas de ternura em cada olhar

O bairro do amor é uma zona marginal
Onde não há prisões nem hospitais
No bairro do amor cada um tem que tratar
Das suas nódoas negras sentimentais

Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair um pouco
Eu sei que tu compreendes bem

in Bairro do Amor, Jorge Palma

2.4.06

Perigo de Explosão

Os ventos todos fechados dentro da minha mão.
Quantos ciclones queres ?

José Mário Silva, A Naifa

17.3.06

Suor e Fantasia

6 da tarde e já está sol lá fora. Fico só mais meia hora, numa pétala de sono insolente. Os teus pés ainda dançam, vão andando assim tão delicados pelo dia adolescente, dedo a dedo, doces. Ai, a graça do amor! Já não vou trabalhar! As tuas olheiras de cansaço dão um traço bem preciso ao sorriso que preenche todo o vasto espaço. Ai, a graça do amor! Já não vou trabalhar! Meia noite e café da manhã: esse teu rosto é o meu dilema e despimo-nos à pressa para ir ao cinema. Ai a graça do amor! Já não vou trabalhar! Todo o dia e toda a noite só suor e fantasia, quem julga que é fácil que experimente levitar sobre o Tejo: a vida é difícil, sempre foi.

Quinteto Tati, Exílio

26.2.06

Deves andar sempre bêbado. É a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do tempo que te pesa sobre os ombros e te verga ao encontro da terra, deves embriagar-te sem cessar. Com vinho, com poesia, ou com a virtude. Escolhe tu, mas embriaga-te. E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas de uma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez atenuada, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que passou, a tudo o que murmura, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala; pergunta-lhes que horas são: "São horas de te embriagares". Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem descanso. Com vinho, com Poesia ou com a virtude.

Charles Baudelaire, in Spleen de Paris